Aquela rua

13:40


Eu devia ter uns oito anos quando meu pai se mudou para aquela rua.
Não seria por muito tempo. A ideia era passar alguns meses naquele antigo sobrado até que terminasse a reforma do apartamento novo. Então fomos eu, meu pai, meu irmão e nosso cachorrinho, um husk siberiano lindo, branco e preto, de olhos azuis, chamado Dragon – quem escolheu o nome foi meu irmão.
Naquela época, a minha futura situação no meu colégio já estava desenhada. Na verdade, estava mais para um garrancho do que para um desenho: minha popularidade na escola só caminharia de mal a pior. Eu me achava feia, esquisita e desengonçada, e, para piorar, todo mundo me achava feia, esquisita e desengonçada.
Eu me sentia um pouco mais aceita no prédio onde minha mãe morava, apesar de que lá não havia muitas crianças para me aceitarem. Eram só algumas garotas três ou quatro anos mais novas do que eu, e três ou quatro anos para uma criança são muita coisa. Aliás, meu irmão é quatro anos mais velho, o que significa que, em casa, quando eu era sua única companhia, ele brincava bastante comigo – mas, lá fora, ele tinha a turma dele. Nos prédios onde meu pai morava, nunca tinha criança. Definitivamente, metros quadrados e localização contam mais na hora de seus pais escolherem um apartamento do que a presença de crianças.
Até que meu pai se mudou para aquela rua.
Lembro direitinho do primeiro fim de semana lá. A rua era calma, só de casas. Não tinha muito carro e meu pai me deixou brincar lá fora. Dois minutos depois, chegou a primeira criança para conversar comigo. Ela tinha a minha idade. Dois minutos depois chegou outra criança, e mais outra, e mais outra. De repente, eu me via dentro de um grupo de dez, doze crianças, todas vizinhas. Meu Deus! Minha alegria era tanta que parecia que eu tinha sido transportada para uma terra longínqua. Não era uma nova rua, era um novo universo paralelo, eu tinha certeza.
Tinha a Joana, que fazia picolés para a gente vender nas casas. Tinha a Patrícia, prima dela, que tinha dois gatos. Um dia, um dos gatos sumiu e passamos o dia inteiro na rua, procurando por ele, com direito a lanterna, corda, bússola! Tinha a Ju, que sempre nos chamava para tomar café na casa dela à tardinha – como era bom sentir o cheiro do biscoito de queijo que a mãe dela fazia, e mais ainda, fazer parte daquele bando alegre de crianças que ia lá comer os biscoitos de queijo, e tomar suco de uva, e depois voltar alegre para a rua! Tinha o Daniel, que gostava de mim. Eu mal podia acreditar: tinha o Daniel, que gostava de mim! Ele era um ano mais velho, usava óculos e isso é tudo que me lembro dele, além do fato de que… Deus, ele gostava de mim, e todas as crianças daquela rua sabiam disso, e como isso me deixava feliz.
Lembro de como era bom, à noite, ficar sentada com todos aqueles amigos na calçada. Da rua, eu via as luzes dos filmes a que meu pai assistia na televisão, as luzes refletidas nas paredes do sobrado. A gente ficava vendo as luzes e conversando, até que alguém pegava uma bola, até que a gente brincava de mês e telefone sem fio, até que meu pai me chamava para dormir e, no dia seguinte, começava tudo de novo.
Mas é claro que tinha o apartamento. A reforma. O apartamento muito maior e melhor do que aquele sobrado, numa rua melhor e cheia de prédios.
Não participei da mudança. Não me despedi de ninguém. Eu estava na casa da minha mãe, quando meu pai ligou, feliz, dizendo que, no fim de semana seguinte, já estaríamos no novo apartamento.
Então, passei os finais de semana seguintes naquele apartamento gigante, lindo, é verdade, mas num prédio sem crianças. Depois, eu conheceria dois vizinhos, o Gustavo e a Carol, mas isso era depois. Naquele momento, tendo como universo o prédio do meu pai, o prédio da minha mãe e a escola, eu me sentia completamente sozinha.
Não sei por que, mas nunca pedi que meu pai me levasse de novo àquela rua. Criança tem umas coisas. Na minha cabeça, era como se fosse impossível voltar: como se eu tivesse sido arrancada da minha dimensão paralela pelos adultos, e só pudesse voltar se alguma mão mágica me levasse para lá novamente.
O fato é que só vários anos depois, quando eu já estava no último ano do colégio, é que, andando pelo bairro, indo ao supermercado, errei o caminho e fui parar sem querer naquela rua. Levei um tempo para reconhecer o sobrado – o meu sobrado, e depois o da Joana, e depois o do Daniel. Não era possível! Aquela rua, aquela dimensão mágica da minha vida, aquele mundo distante, ficava a apenas cinco quadras do apartamento reformado, onde eu ainda morava. Cinco quadras.
Por algum tempo, fiquei ali parada. Eu não era mais criança, mas, mesmo ocupada com os estudos para o vestibular, imediatamente voltei no tempo e revi com toda força os meus dias naquela rua. Cinco quadras! Eu devia ter voltado. Devia ter pedido ao meu pai, ao meu irmão, eu devia ter gritado! Devia ter contado para eles o que aquela rua representava na minha vida… Devia ter contado que tinha a Joana, os gatos da Patrícia. Tinha o Daniel, e ele gostava de mim. O que o Daniel teria pensado quando percebeu, de um dia para o outro, que eu não morava mais lá?
Mas não adiantava pensar nessas coisas. O tempo tinha passado e eu tinha uma tarde de estudos pela frente. Então, respirei fundo, fui ao supermercado e voltei para o apartamento – o tal apartamento grande e reformado num prédio sem crianças, mas e daí, agora eu já não era uma delas.
Texto nostálgico. Da escritora mineira Liliane Prata que gosta de escrever todo tipo de texto. Embora o seu preferido seja ficção.

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4 comentários

  1. Adorei o texto!

    http://l-ovelythings.blogspot.com.br/

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  2. aaah que nostalgia *-*
    adorei seu blog viu.
    beijos:*

    http://alebeatriiz.blogspot.com.br/

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    Respostas
    1. Da uma nostalgia né? lendo esse texto é como se eu tivesse vivendo minha infância de novo!
      e espero que tenha gostado mesmo do blog (:
      beijão

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